Há um lugar que há pouco tempo visitámos. Um lugar estranho, mas não tão mau assim. De facto, gostaríamos de vos fazer chegar este tal sítio, já que muitos de vós (esperemos) nunca irão conhecê-lo.
Abram então a janela da imaginação e deixem-nos guiá-los.
Ao chegar, serão recebidos por duas grandes portas de madeira. Não tenham medo, nenhuma porta foi feita para estar fechada, mas sim para ser aberta. Entrem.
À vossa frente projecta-se um longo corredor salpicado aqui e ali por imagens de belas paisagens à beira-mar e de orlas tranquilizantes de florestas. Se virarem à direita, encontrarão uma ampla sala de convívio onde a luz que entra pela janela se derrama nas paredes, deixando um rasto amarelo de calor. Vários sofás pretos agrupam-se à roda de um televisor e, a um canto da sala, algumas cadeiras convidam à leitura dos livros que estão colocados na estante, debruçada sobre a mesa. Para lá das janelas, antevê-se uma pequena varanda, onde alguém fuma, estendendo o olhar sobre os telhados gastos da cidade.
Deixando para trás a sala, ao longo do corredor passamos por outras nove portas, cada uma delas a entrada para um quarto. Ao fundo, um refeitório iluminado, onde a única coisa que parece faltar são as habituais conversas intercaladas.
Se nos seguirem ainda até outra divisão, desta vez fora das grandes portas que há pouco atravessámos, verão aquilo que vos fará lembrar uma grande sala de artes, com quadros inacabados e novas ideias à espera de serem tecidas pelas mãos da criatividade.
Agora que a nossa breve visita acabou e que as apresentações ficaram feitas, perguntamos-vos: Parece um lugar assim tão mau, depois de o conhecerem? Que aura ameaçadora poderá ter este espaço que se assemelha quase a uma pequena pousada? Porque receiam tanto ouvi-lo mencionar quando não há nada de diferente nele?...
Nada de diferente, enfim… Por agora vamos ignorar que se passeiam pelos corredores vários enfermeiros com as suas batas brancas. Vamos ignorar também que dois dos quartos são quartos de isolamento por um bom motivo. E já agora vamos esquecer que as pessoas que aqui se encontram não estão “exactamente” bem…
Até porque, estranhamente, ignorar e esquecer que este local e estas pessoas existem é aquilo que muitos de nós tentam fazer. Não lhes dirigem sequer um pensamento. E porque haveriam? Tudo isto é uma realidade tão distante, um mundo tão completamente à parte, que não vale a pena ser lembrado…
Precisamente, sabíamos que já lá tinham chegado. O “local” que o nosso grupo visitou não é mais nem menos do que a ala psiquiátrica de Hospital do Patrocínio. O manicómio, o andar dos malucos, como é vulgarmente conhecido.
Já vos descrevemos uma parte da visita… mas esperem, oiçam-nos, que ainda mal começámos! Vimos muito mais coisas. E sim, vimos “malucos”, “tarados” e pessoas com “parafusos a menos”.
E vimos as expressões delas: a apatia, a tristeza; um olhar perdido e um olhar alegre. Vimos nas suas expressões aquilo que elas são: pessoas. Pessoas como nós. Pessoas que já foram como nós e pessoas como as quais poderemos vir a ser.
Dito isto, será a “loucura” uma realidade assim tão distante?
É isso que queremos descobrir e é isso que queremos levá-los a descobrir.
Guiadas pelo Enf. João Galego, quem nos proporcionou a visita e muito nos ajudou no desenvolvimento do projecto, a nossa tarefa está mais facilitada. Mas está na altura de transmitir “a mensagem”.
“Quem são, afinal, as pessoas com doenças mentais?”
É fácil, são muitas vezes pessoas como qualquer outra, que passam despercebidas na multidão. Qualquer um de nós o pode vir a ser ao longo da sua vida. Estas são doenças que afectam um quarto da população; uma em cada quatro pessoas. Um número deveras impressionante, certo? Mas mais impressionante ainda é o estigma, o preconceito, do qual estas doenças são alvo embora sejam tão comuns.
“E dentro destas, quais são então as doenças mais frequentes?”
No hospital, os casos mais comuns são as depressões e psicoses. São aquelas que têm efeitos mais notórios, mas é também importante reter que muitas das pessoas que sofrem disto conseguem levar uma vida normalizada. Quando as pessoas são internadas é porque a doença atingiu um extremo, o individuo passou a representar um perigo para si mesmo e para os outros.
“Quando isso acontece, a pessoa fica internada muito tempo?”
Não, normalmente um doente fica internado no hospital no máximo durante duas semanas. É muito importante que nestes casos não se perca o contacto com a realidade, com o mundo e com a sociedade. Aqui tenta-se que o doente esteja o mais integrado possível, como se pode ver. São pessoas que se comportam e falam como qualquer outra, reúnem-se na sala de convívio, comem juntas, fazem actividades no espaço de terapia ocupacional (na salinha de artes com quadros inacabados). Houve apenas uma má situação que as trouxe até aqui.
“Contudo existem dois quartos de isolamento. Em que situações são usados?”
Usam-se quando é necessário “vigiar” uma pessoa, quando precisamos de lhe dar mais atenção. São usados em situações mais graves, em que o doente representa um perigo; quando tenta o suicídio ou não é capaz de controlar os delírios.
Ainda assim, acabam por melhorar e tenta-se que permaneçam lá o menor tempo possível.
“Como é que uma pessoa chega este estado? Que tipo de más situações é que as trazem até aqui?”
Que situações?... Enfim, a vida. Tudo o que vai acontecendo. Ainda não se compreende bem a doença mental; ninguém é capaz de dar uma definição exacta e muito menos saber o que a despoleta. Sabe-se apenas que o meio circundante é fundamental. Quanto pior é o meio envolvente, pior é o estado da pessoa.
Se alguém perdeu o emprego, está constantemente pressionado, tem problemas no seu dia-a-dia e com a sua família, não se sente bem mentalmente. E este mal-estar por ir-se agravando até originar um colapso.
“Tenta-se que estas pessoas continuem integradas na sociedade, mas isso não é fácil?”
Bem… vamos a ver; uma doença mental é uma doença crónica. Pode ser normalizada através de medicamentos e tratamentos, mas não desaparece. Acontece que, muitas vezes, a pessoa não se sente capaz de enfrentar o mundo e, principalmente, que o mundo não é capaz de lidar com estas pessoas.
É difícil para um doente mental arranjar emprego e, portanto, é difícil integrar-se e levar uma vida “normal”, numa espécie de ciclo vicioso. O maior problema surge mesmo nos outros e nas suas reacções; o preconceito é demasiado forte.
“Esse preconceito surge também na família? O apoio desta é importante, costuma fazer-se sentir?”
... O apoio da família é muito importante; aliás, é importante o apoio de toda gente. Mas o doente costuma ter uma percepção distorcida da realidade, o problema que se faz sentir é constante. Um contacto permanente com isto é desgastante; atinge-se um ponto em que (mesmo que não exista preconceito) a família se sente cansada, já não é capaz de tomar conta da pessoa. O apoio não se faz sentir tanto como seria desejável, mas não podemos culpar só a família. A responsabilidade é da sociedade em geral e esta não está preparada para lidar com a doença mental.
O mais importante é, no final de contas, perceber que um doente mental não é um “maluco”, um mero “doido varrido”; é uma pessoa, um ser humano como todos nós.
Há que ter o bom senso de perceber que a doença mental não se resume a delírios e pensamentos sem nexo. É uma condição na qual as pessoas sofrem e precisam da nossa ajuda. Uma condição pela qual muitos de nós poderiam (e vão) passar.
O ideal a ser alcançado é a desmistificação do estigma, o desmanchar o preconceito. Estas doenças geralmente não representam qualquer perigo a não ser para o próprio indivíduo, não são contagiosas: porquê então fugir, ignorar, menosprezar, quando devíamos estender a nossa mão? De que temos medo?
Não existem duas realidades distintas. Não há um mundo para pessoas normais e outro mundo para quem não o aparenta ser. Tudo é a mesma coisa, e há apenas uma maneira de tornar a realidade melhor. Entre o preto e o branco existem muitos tons de cinzento.
A sociedade tem de tomar consciência deste problema e aprender a aceitar a doença mental. Aprender a aceitá-la para aprender a ajudar quem sofre dela.
A sociedade tem de mudar. E para mudar a sociedade cada um de nós tem de aprender a ver o mundo com novos olhos.